sussurro flamejante - uma história imaginada sobre a atmosfera
peça sonora - peça de rádio 00:29:25, 2025
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sussurro flamejante – uma história imaginada sobre a atmosfera
por Tassia Mila
Quando o mundo começou, não tinha olhos para ver. Havia apenas um vazio cintilante e tudo flutuava nesse vazio: poeira, respirações, desejos. Um dia, o vazio decidiu soprar em si mesmo, e, assim, criou a atmosfera. O sopro dava passagem a vozes e abrigava sons.
Naquele tempo, não havia palavras. Mas o sopro era uma língua, uma comunicação sutil entre tudo o que existia até ali. A atmosfera sabia ouvir. E, ao ouvir, ela se tornou viva.
A atmosfera é uma tecelã bordando fios de ar, fazendo-os e desfazendo-os para fazê-los novamente. Ela guarda histórias para o solo poder suportar, como uma biblioteca sem paredes. A atmosfera, que hoje nos envolve, nasceu primeiro como um sussurro flamejante.
Então um grande pássaro, que voava através de outros mundos, carregando consigo o som das águas e do fogo, bateu suas asas, gerando vento e espalhando fragmentos de sons suspensos pelo ar. Esses fragmentos, ao vento, fragmentos de sons, foram descendo pela atmosfera para, com eles, o mundo formar as palavras.
A partir daí, a dança da atmosfera começou. Seus ciclos.
Um dia, uma lince em cima de uma pedra, ouviu um sopro e começou a conversar com ele. Era a própria atmosfera, que queria contar sua história para a lince.
Ela disse à Lince:
— Eu sou feita de tudo o que vocês, seres, sonham, dizem, lembram, esquecem. Eu sou o som das canções que se perdem nos campos, que são levadas pelos rios, jogadas no mar. Guardo silêncios também. Sou o arquivo do invisível.
E o que acontece com o que você guarda? - perguntou a lince.
— Eu transformo. O que foi esquecido por um, pode ser cantado por outro. O que você pensa que perdeu, eu devolvo em ecos e ventos. Você já ouviu a música das montanhas? São canções sussurradas de histórias que nunca terminam. E tudo o que é esquecido na terra encontra abrigo na atmosfera. E o ar, o vento, contarão histórias, suspensas entre o céu e a terra.
Então a lince disse:
— De agora em diante eu vou ativar o devir-atmosfera na terra: o ar que respiramos, as partículas que tocam nossa pele, as brisas e os cheiros que carregam memórias e as nuvens que nos acompanham em seu eterno movimento e brincadeira de formar imagens.
Ativar um devir-atmosfera é abrir passagens para mundos que ainda não conhecemos, num gesto de confiança no invisível, no que está além do alcance imediato dos sentidos. É uma forma de imaginar até mesmo o impossível: atmosferas curativas, onde o vento carrega sonhos, gerando atmosferas sensíveis, que respondem ao toque dos corpos e lhes sussurram cantos e carícias.
O devir-atmosfera nos desafia a transformar a maneira como o percebemos e nos relacionamos com o mundo. E, assim, respirando juntos, nos tornamos atmosfera e transbordamos. Sussurrarei esse segredo nos ouvidos de quem se abrir a ouvir.