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linhas de transbordamento

entre imagem, som e corpos em fluxos

por Tassia Mila

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1- O conceito de Linhas de Transbordamento surgiu em 2010, durante uma tempestade que fez com que várias pessoas ficassem acampadas juntas, sob uma grande tenda de lona azul. Havia pouco espaço entre uma pessoa e outra neste acampamento, que eu chamei de: guerra-paz — um espaço-tempo em movimento.
2- O terreno da tenda azul, que a todos abrigava, era um tanto quanto íngreme, então, algumas pessoas que cuidavam da tenda, começaram a cavar fendas no terreno, criando canais por onde a água da chuva pudesse percorrer; como que caminhos para a água passar, e desta forma, não transbordar para dentro da grande tenda.
3- Foi quando me ocorreu pensar em linhas de transbordamento.
4- Eu pensei que o transbordar precisa de linhas que lhe dê vazão.
5- Pensei na natureza selvagem.
6- Na natureza selvagem as linhas de transbordamento podem ser pensadas como o acontecer de um rio.
7- Os rios são as linhas que geram e recortam um território e permitem o transbordar. Assim, caminhos são criados e abertos. Os rios estão ativamente conectados à vida cotidiana, provendo água às mais diversas necessidades vitais.
8- Os rios desembocam nos mares e oceanos.
9- Os rios são linhas de força da natureza e do que me ocorre chamar de linhas de transbordamento.
10  Rios fluem para cachoeiras.
11- As cachoeiras.
12- Cachoeiras são como que pontos de encontro íntimo de um rio com as rochas, suas grutas e mistérios. As profundezas.
13- Numa cachoeira, acontece um pico de energia, gerado pelo movimento da queda de água, capaz de ativar sentidos criativos.
14- A natureza é arte. 
15- A arte é uma passagem para linhas de transbordamento.
16- A arte é como, enquanto humanos, podemos criar linhas para o que nos transborda, dando-lhes sentido e gerando caminhos.

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17- O ser humano.
18- O ser humano é natureza.
19- E por ser natureza, o ser humano pode ativar devires. Devir: estar em fluxo 
      e vir a ser alteridades. O corpo é uma encruzilhada que pode receber múltiplos         devires. Devir-Jaguar, devir-pedra, devir-rio, devir-salamandra, devir-rosa, 
     devir-câmera. Se uma salamandra pudesse cantar, como cantaria? 
     Imagino uma salamandra cantando e canto como se fosse uma salamandra.
20- Com o devir e a imaginação, podemos considerar o que o xamã Davi Kopenawa  Yanomami chama de segurar o céu, para prevenir uma desarticulação cósmica e 
      evitar o fim do mundo. 
21- Ativar devires-natureza são formas de segurar o céu. Uma coruja observa a noite 
      na floresta e diz algo no ar. E uso o verbo dizer para o som da coruja, porque ela
      também pode ser humana na cosmovisão indígena. Nesta perspectiva, os humanos, 
      os animais, as plantas, os minerais, a água, etc., são todos entes capazes de          atravessar fronteiras e serem humanos também, tais como os humanos 
      atravessam fronteiras e devires. 
22- E aqui há que se falar sobre o tornar-se humano, o devir-humano. Não tomemos como certo que ser humano está apenas ligado a ter nascido num corpo chamado humano. Há também um devir-humano que pode ser acessado e ativado, tanto para aqueles que nascem com o corpo humano, o totem humano, quanto para entes variados em outros totens e corpos. O humano é uma potencialidade circulante em devir, bem como as animalidades, e não há hierarquia como se o humano fosse superior ao animal, mas uma questão de equilibrar instâncias e totens numa relação com a natureza. 

 

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23- O devir não é sobre alcançar um estado final, mas sobre estar em fluxo. 
24- Fluxos que acabam por compor uma Córporea-imagética  — a paisagem imaginada corpórea  — as imagens que um corpo se torna passível de modular e reverberar numa relação com outros corpos em devires: humanos, animais, plantas, máquinas, instrumentos, objetos, terra, território, etc.
25- A imagem tem a capacidade de se infiltrar por entre fendas no espaço-tempo, ativando memórias e gestos esquecidos. As imagens operam como superfícies de contato, onde os vestígios de devires, de fluxos se inscrevem. Nessas fendas, imagens e sons guardam e imprimem marcas, operam aberturas.
26- A Córporea-imagética emerge como uma paisagem em constante transformação, onde os corpos e os sons se atravessam e se modulam mutuamente. Se cada corpo traz em si uma ressonância, um arquivo sonoro-imagético latente, então é possível pensar a sonoridade como um gesto de escuta e inscrição simultâneas. Som é uma imagem afinal, uma imagem sônica. Imagens transcendem o visual, são fluxos em si de energia que se desdobra em materialidades possíveis no universo.
27-As Linhas de Transbordamento, nesse sentido, são trajetórias de fluxo, mas também marcas sensíveis no tecido do tempo e do espaço. Como um rio que ao transbordar redesenha sua própria margem, os corpos que ressoam em suas paisagens imagéticas criam novos territórios e novas formas de ser e estar no mundo, desta forma, geram novos caminhos.
28- Assim como um corpo que canta pode se tornar rio, pedra, salamandra, uma imagem em fluxo pode se tornar pura pulsação, puro transbordamento. Nessa interseção, som e imagem são estados de vibração que ativam o sensível e por vezes borrarão as linhas de transbordamento num transbordar das linhas, que pedirão assim, que novas linhas sejam contornadas, num movimento de temperança. A temperança, arcano 14 do Tarot, que traz a figura de um Anjo segurando dois vasos nos quais vai jogando água de um vaso ao outro, num movimento perene, tal como as linhas de transbordamento, seus contornos, o borrar das margens para voltar a contornar novamente.
 

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29- E se pensarmos essa dinâmica não apenas como justaposição de elementos, mas como um campo de forças? Sons e imagens não apenas coexistem, mas se afetam, tensionam-se, dissolvem-se um no outro. A Córporea-imagética se expande para um campo de paisagem audiovisual transbordante, onde o tempo e o espaço se torcem, se dobram e se reinventam.
30- O transbordamento não é um excesso, mas a própria natureza do inconsciente, aquele grande mar. No transbordamento, vem aquilo que o inconsciente faz emergir, num num encontro e choque. Um campo elétrico onde o passado, o presente e o futuro, se tocam numa atualidade potente. No que Walter Benjamin chamou de Jetztzeit — o tempo do agora — que não é o da presentificação linear, mas um agora carregado dessa atualidade potente onde os tempos se encontram gerando um relâmpago — o momento de irrupção em que a história deixa de ser vista como uma sequência linear e se transforma em uma constelação. Nesse momento, as imagens se congelam, são dialéticas e como frames de um filme, ficam passíveis de montagens variadas.
31- Córporea-imagética então vai se compondo e (de)compondo) com as histórias que podemos ir criando, gerando e contando, que transitam em nosso corpo, em nossos territórios de criação e existência.
32- Se as imagens imprimem e guardam marcas, elas também sobrevivem, retornando em novos contextos, reativadas por novas paisagens imagéticas e corpos em ressonância. Aby Warburg levantou o conceito de Nachleben der Bilder — sobrevivência das imagens — conceito esse que cunhou pensando a partir da língua inglesa survival of the images. Warburg pensa o trânsito das imagens no espaço-tempo, por onde se movimentam, passíveis de repetições inconscientes — pathosformel — imagens e acrescento a ideia sons também, que emergem para além da tradição canônica e que sobrevivem, persistem, aparecem e reaparecem pelas brechas como gestos em suspensão, que podem ser, revelados, trazidos à tona.

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33- Assim como ondas sonoras se propagam no espaço, atravessando tempos e territórios, as imagens e sons carregam consigo a memória de outros gestos, outras intensidades. A sobrevivência das imagens não é um retorno ao passado, mas um movimento de transbordamento entre passado, presente e o porvir.
34- Pode-se pensar a Corpórea-imagética como aquele campo elétrico e quando um corpo canta ou ressoa, ele se torna um transmissor dessas sobrevivências, um canal ou até mesmo um device com múltiplos canais de transmissão e reconfiguração das imagens e dos afetos que as acompanham. 
35- O que Warburg chamou de Pathosformeln, essas fórmulas de emoção e intensidade que atravessam o espaço-tempo, encontram um modo de ativação pela frequência de um corpo em devir.
36-A paisagem audiovisual transbordante é um espaço de criação e um campo de memória ora em movimento ora em repouso. Os sons e as imagens que nos atravessam não estão isolados no tempo; eles carregam consigo resquícios de outros tempos, de outros cantos, de outros transbordamentos que ressoam na atualidade potente do presente. Criar nessa perspectiva é criar em fluxo num tecido vibrátil de sobrevivências, de potências em suspensão a serem descobertas, de novidades possíveis e impossíveis.

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Quando a noite toca a água Gif 4k.GIF
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